domingo, 4 de dezembro de 2016

Violento.

Indivíduo 1:  - Aí, passa o radinho, passa o radinho, anda. Não grita. Não chama ninguém.
 - O celular? tá aqui, pode pegar.
Indivíduo 1: - E a carteira, dinheiro, dinheiro, anda.
 [abre o bolso lateral da mochila e pega a carteira]
 - Posso ficar com os documentos pelo menos?
Indivíduo 1: - Fica com a carteira, só o dinheiro.
 - Obrigado
 [E a percepção interna do absurdo de se agradecer a quem vem te assaltar, deixando até escapar um meio sorriso tímido de auto-contradição]
Indivíduo 2: - Esse fone também, anda.
[puxo o fone de ouvido que estava passado por dentro da camiseta e que nem tinha tirado pela pressa de só desplugar o celular e entregá-lo logo pra que aquilo acabasse o quanto antes]
- Toma, pode levar
[Alguns poucos segundos de silêncio seguidos de um estalo de dor corrente pela nuca, lateral direita do pescoço e uma ferroada no canto direito do queixo. O fone tinha sido usado de chicote antes mesmo que eu pudesse me dar conta do que tava acontecendo]
Indivíduo 2: - Toma seu demônio dos infernos! [Os olhos arregalados e cheios de um ódio tão grande que eu senti que me queriam morto da pior maneira possível com eles. Claramente aquele ódio não era de mim, mas naquele momento era pra mim, que estava ali pra recebê-lo, querendo ou não.]
Indivíduo 1: Ô, para com isso, pra quê isso?
[Por dentro eu compartilhava da mesma indignação, sem conseguir esboçar qualquer reação pela paralisia generalizada por tanta violência gratuita. Sempre fui bem colaborativo e calmo durante assaltos e não entendi por que eu tava apanhando. A gente desenvolve cada "qualidade" pra sobreviver... Mas mais uma vez me senti de certa forma grato pelo interlocutor do assalto, que parecia ser o único com algum grau de capacidade comunicativa.]
Indivíduo 3: - Chega aí, piá [me puxa pelo ombro numa espécie de abraço de lado, com o olho também estalado, mas não de ódio. Uma espécie de automatismo vazio, uma violência não explosiva, mas naturalizada, no olhar] Nóis tá ligado onde cê mora. Se você fizer qualquer barulho, a gente te mata.
- Não, tá sussa, pode ficar tranquilo.

E num momento que não durou nem 10 minutos foram meu celular, o dinheiro que eu tinha na carteira e algo de mim que eu não conseguia nem distinguir o que era.

Eram 16h40 da tarde, eu estava do outro lado da rua do portão da minha casa.

Cerca de uma hora depois e alguma mínima organização sobre o que tinha acontecido - e depois de ter andado umas 5 quadras e ter reencontrado os mesmos rapazes andando na rua e ficar paralisado de medo, mas com a ideia de que talvez acionar a polícia naquele momento seria uma chance de alguém os interromper e impedir que mais gente passasse pelo o que e passei, ou por algo semelhante, ou por algo pior - resolvi ligar pro 190. Não gosto da PM, não gosto do propósito ou da ideologia de uma força institucional que existe para manutenção do monopólio da violência pelo Estado e pela segurança patrimonial e das "pessoas de bem". Eu sou visto por eles como uma "pessoa de bem". Eles, os PMs e pelos meninos que me assaltaram. "Pessoa de bem" pra PM é o tipo de gente que merece "proteção". Pros meninos, "gente de bem" é mais uma representação da violência estrutural que sofrem e que tentam vingar com violências individuais.

Durante a redação do boletim de ocorrência eu comento com um dos soldados sobre a minha perplexidade com o horário do evento e com a violência toda.

Soldado 1: "É, Maringá tá complicada. A gente copiou os dados que você passou por telefone e tamo fazendo ronda por aqui pra ver se acha os caras. Mas é assim mesmo. Na região do centro acontece muito disso. Aquela praça Raposo Tavares mesmo, é boca, ponto de venda de coisa roubada. A gente só não intervém mais porque a prefeitura não deixa, tem gente que fica levando sopa pra esses vagabundos."

Violência.

E no instante em que eu ouvi o discurso do soldado eu tive certeza que era muito mais violenta a ideologia presente no discurso dele [E da instituição, representando a força do Estado], do que a chicoteada pelo fone de ouvido que eu levei ou o assalto sofrido.

E eu fico pensando pra onde tudo isso vai, sabe?

Momentos depois me deu vontade de atender o menino que me agrediu numa sala de sutura, onde eu seria autoridade e ele seria obrigado a me ouvir, sem espaço ou oportunidade pra me agredir fisicamente. E eu queria dar uma bronca nele. Questionar onde ele estava com a cabeça e tratá-lo bem para que ele se sentisse culpado.

A violência nunca para, nem nas nossas "boas intenções"...

E a violência que encontra a gente, desperta o que temos de violento em nós. Uma coisa alimenta a outra, que alimenta a outra, que alimenta a outra...

E como a gente quebra o ciclo?

O assalto em si não me espantou. Me surpreendeu pelo horário. Mas não me espantou e nem me chocou tanto. Foi o segundo que sofri num intervalo de cerca de 3 meses. Mas eu tô do outro lado da moeda. Nem o celular nem o dinheiro na carteira vão me fazer falta ou serão difíceis de repor. Eu faço parte da Elite econômica do país, cuja existência violenta diariamente quem não faz parte dela e é agredido de tantas formas que nem estranha mais. E que vaza no olhar de ódio contra o playboy assaltado. O demônio dos infernos cuja existência da forma que se dá e contraste com a dele deixa claro para algo nele a violência na qual vive e à qual é submetido. O que me tirou o chão foi a agressão física gratuita. Ele não me bateu por nenhum movimento que eu fiz, por ter reagido ou por ter feito algum movimento brusco. Eu apanhei por existir. Ele me bateu porque a minha existência era pra ele odiável por motivos que eu só posso imaginar.

De alguma forma que nem eu sei explicar direito, apesar das milhares horas de aulas de história e discussões sobre estrutura social, a minha existência, do ponto de vista social e econômico, da forma que se dá é violenta. E ela de fato é. De quem é a culpa? Acho que de tanta gente, sabe?

De quantas e quais formas contribuímos sem nem perceber pra essa - e pras tantas outras cotidianas - violência que se retroalimenta nas relações [sociais, pessoais...]?

Eu sei que no dia seguinte eu claramente embotei. Fazia tempo que não me sentia assim. Uma vontade de me encolher e me retrair e não fazer nada e não sair da cama e não sair de casa e não conversar. Só me encolher em mim mesmo e ficar quieto. O medo, o efeito da violência sofrida. Quem se reconhece vítima de uma situação de violência sabe do que eu tô falando e conhece muito bem essa sensação. Ela vem depois de se ser violentado, violado. A sensação de que não existe ambiente seguro que não seja dentro de si mesmo.

A sensação de que o mundo exterior é todo ameaça, consumada ou potencial.

A sensação de fragilidade interna extrema.

E eu me pergunto quantas vezes os meninos que me assaltaram não devem ter sentido isso no trajeto que os levou onde estão hoje? E de que maneiras eles lidaram e lidam com isso...

E tudo faz muito sentido, sabe?

A violência respinga...

E respinga pra todos os lados...

E o ciclo não para...

O clichê "violência gera violência" ecoa...

É "playboy" contra "vagabundo", "gente de bem" contra "esses marginais", PM achando que a vida é um counter strike ininterrupto...

E é só dor pra todo lado...

As movimentações padrão só se alimentam...

E alimentam esse todo violento...