segunda-feira, 5 de junho de 2017

Das coisas que não aprendemos

Junho, mês de transição sazonal e de tempo de vida, foi iniciado com uma notícia bombástica: O cancelamento de Sense8 pela Netflix. No dia 1º, o Omelete publicou um artigo comunicando o posicionamento oficial da produtora e gerou bastante frenesi entre a comunidade de fãs da série nas redes sociais. Uma galera criticando o fim da série por sua profunda representatividade de grupos sociais não hegemônicos, especulando sobre o caráter mercenário da produtora ao não investir mais na produção [cada episódio, alega a empresa, custa cerca de 9 milhões].

Ao me deparar com a chamada da notícia, eu entrei em consonância com esse público e antes de clicar no link, já me vieram ideias de boicote à Netflix. Até que eu abri a matéria e, ao lê-la, fui atraído instantaneamente para outra, que explicava alguns detalhes que rondavam o fim da série. No segundo link aberto, algo me tocou profundamente. Foi explicado, para além dos custos da produção e para o fato de já haver uma previsão para que a série não tivesse mais que três temporadas, as motivações dessa interrupção. As irmãs Wachowski, famosas pelo sucesso de "Matrix", enfrentam um processo conturbado em suas vidas pessoais que justifica o fim da série [Lana assumiu sua identidade trans em 2012 e Lilly em 2016 - vulgo ontem]. A primeira temporada foi escrita a quatro mãos. Já na segunda, "Lana está responsável pela parte artística praticamente sozinha, o que não é uma coisa simples" e, apesar de ter iniciado a redação da terceira temporada, a irmã mais velha teve que enfrentar o processo de produção sem sua parceria costumeira, por um motivo muito interessante. Lilly "está completando seu processo de transição e, por  conta disso, tirou um tempo para ela mesma", o que por si só já justifica, pra mim, qualquer interrupção do processo de produção da série. 


"Ah, mas e os fãs?"



Na boa, a série fala, dentre tantas outras coisas, fundamentalmente sobre empatia e sobre a intensidade e o sofrimento de populações minoritárias diante de seu processo de enfrentamento diário contra as violências estruturais sofridas nas mãos de grupos hegemônicos. O público mais acalorado da série se diz assim justamente por se colocar como defensor dessas minorias oprimidas, ou pertencente a elas. Aí o que acontece? Uma das mentes por trás da criação desse ícone de representatividade precisa se afastar por ser de carne e osso e viver para além da ficção criada, toda a intensidade de um processo complexo pra caralho [Sobre os quais uma das personagens favoritas de muitos, Nomi, é uma representante emblemática] e tudo o que se sabe dizer é "como EU me sinto lesado por estar sem minha série favorita"?????


Sério, gente, de que serviu assistir Sense8? De que serve defender a série e as populações oprimidas representadas na ficção se quando ocorre algo real envolvendo os processos profundos dos quais a própria série fala, tudo o que se faz é olhar pro próprio umbigo e pra própria "dor", ignorando completamente a vivência de outro ser humano [E olha que não é qualquer ser humano, mas aquela que contribuiu substancialmente pra criação da história]. Onde fica a empatia - tema central da série - dos fãs fervorosos de Sense8 nessas horas?


O quanto nossas "virtudes" de luta contra opressão não são só fachada? O quanto a gente realmente se dispõe a ouvir e a conhecer os lados das histórias para não tirar conclusões precipitadas, tal qual faz os grupos opressores - que não hesitamos em criticar - com sua violência contra grupos oprimidos? O quanto não estamos reproduzindo, nesse pequeno "gesto de indignação" contra o fim da série, nossa falta de disposição de empatia e acolhimento, de escuta e atenção ao outro? E que tipo de transformação vamos conseguir empenhar, se não refletimos sobre nossa própria relação com vivências alheias, quando de imediato nos deparamos com uma perda que pra nós parece algo "noooooossa".



Fico imaginando a desproporcionalidade entre o que a Lilly deve tá passando e a falta que a série vai fazer porque não sabemos lidar com histórias inacabadas...



Esse desfecho da série, dessa forma, acho que foi a coisa mais viva que poderia ocorrer. O exemplo de como essa violência impacta as vidas das pessoas e os processos nos quais elas se envolvem, de como a vida não é essa coisinha linear começo-meio-e-fim [o que a série também tenta ilustrar na sua trama]... Se faltou um capítulo ou uma temporada para saciar nossa curiosidade Voyeurista, acho que a vida deu o melhor exemplo real sobre a mensagem que a série se propôs a passar: Do olhar empático sobre o outro que sofre, o outro que é diferente e o quanto realmente valem essas diferenças frente àquilo que nos aproxima e nos conecta...



Ou o do quanto nós de fato vivemos de ficção e não temos um pingo de vergonha na cara de nos dispormos a viver o exemplo dos nossos discursos...