segunda-feira, 5 de junho de 2017

Das coisas que não aprendemos

Junho, mês de transição sazonal e de tempo de vida, foi iniciado com uma notícia bombástica: O cancelamento de Sense8 pela Netflix. No dia 1º, o Omelete publicou um artigo comunicando o posicionamento oficial da produtora e gerou bastante frenesi entre a comunidade de fãs da série nas redes sociais. Uma galera criticando o fim da série por sua profunda representatividade de grupos sociais não hegemônicos, especulando sobre o caráter mercenário da produtora ao não investir mais na produção [cada episódio, alega a empresa, custa cerca de 9 milhões].

Ao me deparar com a chamada da notícia, eu entrei em consonância com esse público e antes de clicar no link, já me vieram ideias de boicote à Netflix. Até que eu abri a matéria e, ao lê-la, fui atraído instantaneamente para outra, que explicava alguns detalhes que rondavam o fim da série. No segundo link aberto, algo me tocou profundamente. Foi explicado, para além dos custos da produção e para o fato de já haver uma previsão para que a série não tivesse mais que três temporadas, as motivações dessa interrupção. As irmãs Wachowski, famosas pelo sucesso de "Matrix", enfrentam um processo conturbado em suas vidas pessoais que justifica o fim da série [Lana assumiu sua identidade trans em 2012 e Lilly em 2016 - vulgo ontem]. A primeira temporada foi escrita a quatro mãos. Já na segunda, "Lana está responsável pela parte artística praticamente sozinha, o que não é uma coisa simples" e, apesar de ter iniciado a redação da terceira temporada, a irmã mais velha teve que enfrentar o processo de produção sem sua parceria costumeira, por um motivo muito interessante. Lilly "está completando seu processo de transição e, por  conta disso, tirou um tempo para ela mesma", o que por si só já justifica, pra mim, qualquer interrupção do processo de produção da série. 


"Ah, mas e os fãs?"



Na boa, a série fala, dentre tantas outras coisas, fundamentalmente sobre empatia e sobre a intensidade e o sofrimento de populações minoritárias diante de seu processo de enfrentamento diário contra as violências estruturais sofridas nas mãos de grupos hegemônicos. O público mais acalorado da série se diz assim justamente por se colocar como defensor dessas minorias oprimidas, ou pertencente a elas. Aí o que acontece? Uma das mentes por trás da criação desse ícone de representatividade precisa se afastar por ser de carne e osso e viver para além da ficção criada, toda a intensidade de um processo complexo pra caralho [Sobre os quais uma das personagens favoritas de muitos, Nomi, é uma representante emblemática] e tudo o que se sabe dizer é "como EU me sinto lesado por estar sem minha série favorita"?????


Sério, gente, de que serviu assistir Sense8? De que serve defender a série e as populações oprimidas representadas na ficção se quando ocorre algo real envolvendo os processos profundos dos quais a própria série fala, tudo o que se faz é olhar pro próprio umbigo e pra própria "dor", ignorando completamente a vivência de outro ser humano [E olha que não é qualquer ser humano, mas aquela que contribuiu substancialmente pra criação da história]. Onde fica a empatia - tema central da série - dos fãs fervorosos de Sense8 nessas horas?


O quanto nossas "virtudes" de luta contra opressão não são só fachada? O quanto a gente realmente se dispõe a ouvir e a conhecer os lados das histórias para não tirar conclusões precipitadas, tal qual faz os grupos opressores - que não hesitamos em criticar - com sua violência contra grupos oprimidos? O quanto não estamos reproduzindo, nesse pequeno "gesto de indignação" contra o fim da série, nossa falta de disposição de empatia e acolhimento, de escuta e atenção ao outro? E que tipo de transformação vamos conseguir empenhar, se não refletimos sobre nossa própria relação com vivências alheias, quando de imediato nos deparamos com uma perda que pra nós parece algo "noooooossa".



Fico imaginando a desproporcionalidade entre o que a Lilly deve tá passando e a falta que a série vai fazer porque não sabemos lidar com histórias inacabadas...



Esse desfecho da série, dessa forma, acho que foi a coisa mais viva que poderia ocorrer. O exemplo de como essa violência impacta as vidas das pessoas e os processos nos quais elas se envolvem, de como a vida não é essa coisinha linear começo-meio-e-fim [o que a série também tenta ilustrar na sua trama]... Se faltou um capítulo ou uma temporada para saciar nossa curiosidade Voyeurista, acho que a vida deu o melhor exemplo real sobre a mensagem que a série se propôs a passar: Do olhar empático sobre o outro que sofre, o outro que é diferente e o quanto realmente valem essas diferenças frente àquilo que nos aproxima e nos conecta...



Ou o do quanto nós de fato vivemos de ficção e não temos um pingo de vergonha na cara de nos dispormos a viver o exemplo dos nossos discursos... 

domingo, 4 de dezembro de 2016

Violento.

Indivíduo 1:  - Aí, passa o radinho, passa o radinho, anda. Não grita. Não chama ninguém.
 - O celular? tá aqui, pode pegar.
Indivíduo 1: - E a carteira, dinheiro, dinheiro, anda.
 [abre o bolso lateral da mochila e pega a carteira]
 - Posso ficar com os documentos pelo menos?
Indivíduo 1: - Fica com a carteira, só o dinheiro.
 - Obrigado
 [E a percepção interna do absurdo de se agradecer a quem vem te assaltar, deixando até escapar um meio sorriso tímido de auto-contradição]
Indivíduo 2: - Esse fone também, anda.
[puxo o fone de ouvido que estava passado por dentro da camiseta e que nem tinha tirado pela pressa de só desplugar o celular e entregá-lo logo pra que aquilo acabasse o quanto antes]
- Toma, pode levar
[Alguns poucos segundos de silêncio seguidos de um estalo de dor corrente pela nuca, lateral direita do pescoço e uma ferroada no canto direito do queixo. O fone tinha sido usado de chicote antes mesmo que eu pudesse me dar conta do que tava acontecendo]
Indivíduo 2: - Toma seu demônio dos infernos! [Os olhos arregalados e cheios de um ódio tão grande que eu senti que me queriam morto da pior maneira possível com eles. Claramente aquele ódio não era de mim, mas naquele momento era pra mim, que estava ali pra recebê-lo, querendo ou não.]
Indivíduo 1: Ô, para com isso, pra quê isso?
[Por dentro eu compartilhava da mesma indignação, sem conseguir esboçar qualquer reação pela paralisia generalizada por tanta violência gratuita. Sempre fui bem colaborativo e calmo durante assaltos e não entendi por que eu tava apanhando. A gente desenvolve cada "qualidade" pra sobreviver... Mas mais uma vez me senti de certa forma grato pelo interlocutor do assalto, que parecia ser o único com algum grau de capacidade comunicativa.]
Indivíduo 3: - Chega aí, piá [me puxa pelo ombro numa espécie de abraço de lado, com o olho também estalado, mas não de ódio. Uma espécie de automatismo vazio, uma violência não explosiva, mas naturalizada, no olhar] Nóis tá ligado onde cê mora. Se você fizer qualquer barulho, a gente te mata.
- Não, tá sussa, pode ficar tranquilo.

E num momento que não durou nem 10 minutos foram meu celular, o dinheiro que eu tinha na carteira e algo de mim que eu não conseguia nem distinguir o que era.

Eram 16h40 da tarde, eu estava do outro lado da rua do portão da minha casa.

Cerca de uma hora depois e alguma mínima organização sobre o que tinha acontecido - e depois de ter andado umas 5 quadras e ter reencontrado os mesmos rapazes andando na rua e ficar paralisado de medo, mas com a ideia de que talvez acionar a polícia naquele momento seria uma chance de alguém os interromper e impedir que mais gente passasse pelo o que e passei, ou por algo semelhante, ou por algo pior - resolvi ligar pro 190. Não gosto da PM, não gosto do propósito ou da ideologia de uma força institucional que existe para manutenção do monopólio da violência pelo Estado e pela segurança patrimonial e das "pessoas de bem". Eu sou visto por eles como uma "pessoa de bem". Eles, os PMs e pelos meninos que me assaltaram. "Pessoa de bem" pra PM é o tipo de gente que merece "proteção". Pros meninos, "gente de bem" é mais uma representação da violência estrutural que sofrem e que tentam vingar com violências individuais.

Durante a redação do boletim de ocorrência eu comento com um dos soldados sobre a minha perplexidade com o horário do evento e com a violência toda.

Soldado 1: "É, Maringá tá complicada. A gente copiou os dados que você passou por telefone e tamo fazendo ronda por aqui pra ver se acha os caras. Mas é assim mesmo. Na região do centro acontece muito disso. Aquela praça Raposo Tavares mesmo, é boca, ponto de venda de coisa roubada. A gente só não intervém mais porque a prefeitura não deixa, tem gente que fica levando sopa pra esses vagabundos."

Violência.

E no instante em que eu ouvi o discurso do soldado eu tive certeza que era muito mais violenta a ideologia presente no discurso dele [E da instituição, representando a força do Estado], do que a chicoteada pelo fone de ouvido que eu levei ou o assalto sofrido.

E eu fico pensando pra onde tudo isso vai, sabe?

Momentos depois me deu vontade de atender o menino que me agrediu numa sala de sutura, onde eu seria autoridade e ele seria obrigado a me ouvir, sem espaço ou oportunidade pra me agredir fisicamente. E eu queria dar uma bronca nele. Questionar onde ele estava com a cabeça e tratá-lo bem para que ele se sentisse culpado.

A violência nunca para, nem nas nossas "boas intenções"...

E a violência que encontra a gente, desperta o que temos de violento em nós. Uma coisa alimenta a outra, que alimenta a outra, que alimenta a outra...

E como a gente quebra o ciclo?

O assalto em si não me espantou. Me surpreendeu pelo horário. Mas não me espantou e nem me chocou tanto. Foi o segundo que sofri num intervalo de cerca de 3 meses. Mas eu tô do outro lado da moeda. Nem o celular nem o dinheiro na carteira vão me fazer falta ou serão difíceis de repor. Eu faço parte da Elite econômica do país, cuja existência violenta diariamente quem não faz parte dela e é agredido de tantas formas que nem estranha mais. E que vaza no olhar de ódio contra o playboy assaltado. O demônio dos infernos cuja existência da forma que se dá e contraste com a dele deixa claro para algo nele a violência na qual vive e à qual é submetido. O que me tirou o chão foi a agressão física gratuita. Ele não me bateu por nenhum movimento que eu fiz, por ter reagido ou por ter feito algum movimento brusco. Eu apanhei por existir. Ele me bateu porque a minha existência era pra ele odiável por motivos que eu só posso imaginar.

De alguma forma que nem eu sei explicar direito, apesar das milhares horas de aulas de história e discussões sobre estrutura social, a minha existência, do ponto de vista social e econômico, da forma que se dá é violenta. E ela de fato é. De quem é a culpa? Acho que de tanta gente, sabe?

De quantas e quais formas contribuímos sem nem perceber pra essa - e pras tantas outras cotidianas - violência que se retroalimenta nas relações [sociais, pessoais...]?

Eu sei que no dia seguinte eu claramente embotei. Fazia tempo que não me sentia assim. Uma vontade de me encolher e me retrair e não fazer nada e não sair da cama e não sair de casa e não conversar. Só me encolher em mim mesmo e ficar quieto. O medo, o efeito da violência sofrida. Quem se reconhece vítima de uma situação de violência sabe do que eu tô falando e conhece muito bem essa sensação. Ela vem depois de se ser violentado, violado. A sensação de que não existe ambiente seguro que não seja dentro de si mesmo.

A sensação de que o mundo exterior é todo ameaça, consumada ou potencial.

A sensação de fragilidade interna extrema.

E eu me pergunto quantas vezes os meninos que me assaltaram não devem ter sentido isso no trajeto que os levou onde estão hoje? E de que maneiras eles lidaram e lidam com isso...

E tudo faz muito sentido, sabe?

A violência respinga...

E respinga pra todos os lados...

E o ciclo não para...

O clichê "violência gera violência" ecoa...

É "playboy" contra "vagabundo", "gente de bem" contra "esses marginais", PM achando que a vida é um counter strike ininterrupto...

E é só dor pra todo lado...

As movimentações padrão só se alimentam...

E alimentam esse todo violento...


domingo, 25 de outubro de 2015

Do porquê dos desabafos

Eu nunca lidei muito bem com a resposta a desabafos [aos meus, pelo menos].
E isso é um ponto complicado em mim, pra mim.
Eu já reagi violentamente contra as respostas padrão a eles. Em outros momentos, busquei uma compreensão, em outros ainda, dependendo de quem dava a resposta padrão e o que ela significava praquela pessoa naquele momento, eu realmente as aceitei bem.

Mas eu tenho um probleminha muito do sério com a ideia de tentarem "deixar a gente bem", quando estamos mal e vamos desabafar.
Tá que existem momentos em que buscamos contatos com outras pessoas esperando que elas nos ajudem a nos animar, mas confesso que isso em mim é bem raro.

E eu penso que isso é tão óbvio e já tão discutido que chega a ser ofensivo que raramente se faça de fato: quando a gente desabafa a gente não busca uma solução, a gente busca empatia, a gente busca uma conexão.

E quando isso da conexão me veio, boom!, me deu um estalo interno

Quando eu desabafo, eu não busco de fato uma solução. Primeiro porque no geral elas são óbvias e eu - assim como todo mundo - as conhece e sabe de cor. Porque elas são na sua maioria muito racionais. E simples mesmo. É o óbvio. E quando a gente se compartilha, a gente espera - eu acho - nem ser lido a partir do óbvio, nem que o óbvio venha a ser equiparado com a nossa singularidade. É ela que quer ser olhada, não o que ela não é.

Quando existe um desabafo, existe o compartilhar de uma profundeza. De coisas sem nome, que falam por lágrimas, por silêncios, por olhares, por linguagens outras que não a da razão ou a da "sensatez".

A gente conhece a razão e a sensatez. A gente conhece a resposta mais madura para os processos. A gente até sabe muito de como vai ser e do que vai ser.

A gente só as vezes não está buscando um sentido, nem uma explicação, muito menos um consolo na forma de uma solução. A gente tá buscando a conexão pela exposição da víscera.

E às vezes eu acho que é essa compreensão que falta: entender que durante um desabafo, a comunicação é visceral. É uma pessoa expondo suas vísceras, conversando na linguagem da víscera. E as nossas vísceras não querem saber do tempo ou da razão, elas só sabem o que sentem no momento em que sentem. O resto do corpo até sabe da transitoriedade disso tudo, mas não é o resto do corpo que fala quando desabafamos, é a víscera. É ela que deve ser olhada e é na linguagem dela que a comunicação se dá, ou deveria se dar, ou pelo menos é essa a linguagem que nossas vísceras buscam.

O contato se torna importante não porque quem ouve vai saber o que dizer para nos acalmar, vai ter a palavra certa para nos fazer entender que a dor passa, que as coisas melhoram. A gente sabe disso, pelo amor de deus, a gente não é burro!

Não é esse o ponto, não é esse o foco.
Muitas vezes a gente não quer que a dor passe, mas que possamos vivê-la. A gente não quer que as coisas melhorem, mas que elas possam ser. Que elas possam ser da maneira que elas vierem!

As coisas melhoram, a coisas passam, sim. Mas eu acho que isso acontece porque as coisas podem ser. E, sendo, a vida flui.

O que as nossas vísceras buscam quando expostas não é que elas sejam logo recolocadas pra dentro e costuradas "onde elas deveriam estar", mas que o outro saiba delas, as conheça, as veja, as olhe, as reconheça, se relacione com elas.

É incrível o quanto conseguimos nos conectar quando a minha víscera encontra a sua e quando a sua encontra a minha. Mais do que ideias em comum, mais do que concepções políticas, religiosas, ideológicas em comum. Uma vez me disseram, com muita razão, que "o sofrimento nos une", mas não é bem o sofrimento, é o seu caráter visceral! Várias outras coisas também nos unem, sofríveis ou não. Mas viscerais.

E eu sinto um medo muito grande e geral para lidar com o visceral. Porque ele não faz sentido. Nem quer fazer. Ele não tem chão, nem teto, nem paredes. Ele não tem forma, mas existe com muita força! Ninguém sabe lidar com ele e ele nem quer que lidem. "Imagem não precisa de explicação, mas de relacionamento". O mesmo para as vísceras!

Não adianta descrever como o processo vai ser e onde ele vai dar

Isso na maioria das vezes a gente já sabe. Mas a gente não está onde ele vai dar, a gente está num ponto dele. E chegar exige que os pontos sejam vividos, todos.

Mas conversar com a víscera do outro é entrar em contato com a sua própria
E isso eu sinto que assusta.

E isso assustar me assusta.

Que tipo de vida frágil é essa que a gente vive e à qual a gente se submete?

Que tipo de covardes estamos nos permitindo ser por medo das dores?

Que tipo de superficialidade e frieza estamos usando para nos esconder de nós mesmos e dos outros?

Eu já conversei com muita gente
no papel de quem desabafa e de quem ouve

E do que eu vi e vivi até agora dessa situação
Quem desabafa não busca solução, não busca razão, maturidade, sensatez
Busca víscera, empatia, conexão.

E isso às vezes exige de nós nossas crianças, nossa birra, a parte de nós que não faz sentido, mas que existe, que está viva e que é muito potente, longe da razão.

E que também
Merece
Voz.

E "só".

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Da Necessidade das Paixões

Isso mesmo que você acabou de ler ali no título
NE-CES-SI-DA-DE

e ponto.

Já é mais do que batida a ideia de que ninguém precisa ou deveria precisar de ninguém para ser feliz ou ainda que precisamos ser inteiros conosco antes de buscarmos uma companhia que nos some, ao invés da busca idealizada, romântica e neurótica por alguém que nos complete, blá blá blá, whiskas sachet.

Mas reafirmo, sem no entanto discordar da ideia batida ali de cima: Acho fundamental e de caráter necessário a experiência da paixão em nossas vidas. Não de forma ocasional ou de exceção, algo como um prêmio de consolação, mas como um modo de vida.

Vou explicar um pouco melhor e talvez o ponto de vista faça um pouco mais de sentido, se tiver ficado confuso.

Há uns 10 ou 11 anos - céus - eu conversava com um grande amigo na volta da escola para o ponto de ônibus. Falávamos sobre a vida e sobre várias coisas. Gostava muito de conversar com esse meu amigo. Ele sempre foi desse tipo de pessoa das ciências exatas com um dom surreal para as abstrações. Muito sábio e muito chegado às simplicidades.

No meio dos assuntos que surgiram, começamos a falar sobre relacionamentos - no caso, na época, sobre mulheres - E conversa vai, conversa vem, aquela velha ladainha adolescente sobre "ai, como eu estou na seca e queria muito namorar alguém, ter uma companhia para conversas, filmes, carinhos, sexo e afins", nada diferente do normal das conversas que temos nessa época, em que a prioridade das nossas vidas parece de fato encontrarmos uma companhia afetiva e sexual.

E no meio de algumas várias trocas de ideias, perspectivas e, principalmente, expectativas, esse meu amigo me soltou o seguinte: "Sabe, kiwi, eu penso da seguinte maneira. Eu sou apaixonado por mecânica - fazíamos curso técnico então e a área dele era essa -  e só agora me dei conta disso e do quanto é importante pra mim viver nesse momento da minha vida essa minha paixão pela área. E eu também penso muito sobre garotas e ter uma namorada, mas percebi que eu preciso, agora, viver essa minha paixão pela mecânica, desenvolvê-la, como um namoro mesmo, como se fosse com uma namorada. Aí se depois disso eu encontrar uma moça por quem eu seja tão apaixonado quanto eu sou pela mecânica, eu penso em investir em um namoro."

Eu achei, na época, uma ideia fenomenal. Desde então essa conversa rodeou minha cabeça, veio e voltou, incontáveis vezes. Recentemente ela tem voltado a rodear minha cabeça com mais frequência... Já há alguns meses, na verdade.

Passei recentemente por alguns momentos de desilusão amorosa com as "mecânicas" da minha vida. Minha área de atuação é outra, ainda que eu tenha um amor especial por física e matemática até hoje e por muitos anos quis seguir a área da engenharia. Mas nos últimos anos tive alguns desencontros de encantamento com minha área de atuação, ou pelo menos com o modo como ela foi apresentada a mim pela vida como possibilidade. Repensando possibilidades de vivê-la e também considerando outras áreas de atuação, sonhos da infância e afins, comecei a (re)identificar áreas de saberes e fazeres que realmente me encantam e que me trazem significado intenso. E, após identificadas, me restava traçar estratégias para conseguir viver essas histórias de amor com essas áreas.

No campo amoroso, como me é típico, sempre houveram mil e uma reviravoltas. Recentemente algumas bem estruturais. Refletindo sobre elas e tentando me aliviar das angústias do processo, fui me refugiar inocentemente em afazeres, naqueles que eu tinha identificado anteriormente como os de encantamento e significado.

Até que de repente, enquanto eu fazia, algo mágico aconteceu: eu me percebi apaixonado. Perdidamente apaixonado. Mas não só por alguém ou por alguma relação afetiva com outra pessoa, mas por uma atividade!

Até aí ok, nada de novo. A novidade foi eu ter percebido o quanto eu realmente PRECISO dessa sensação de paixão, de sentido e de pertencimento com alguma coisa.

Arriscaria dizer que essa necessidade se estende a várias pessoas, quem sabe a todas.

Não sei se foi só comigo, mas sempre me foi incutido um certo caráter de culpa em ler como necessidade a experiência da paixão. Isso não podia, nem nunca pode, ser o foco da minha vida, onde já se viu? E pensando na paixão como algo unicamente direcionado a outra pessoa, isso ainda faz sentido pra mim dentro da minha realidade.

Paralelamente a isso, também já é bem batido o quanto é raro encontrarmos pessoas que realmente conseguem ocupar a maior parte do seu tempo com afazeres pelos quais sejam perdidamente apaixonadas.

Vivemos, infelizmente, para o trabalho. O trabalho que trocamos por dinheiro para podermos trocar por sustento e por tentativas frustradas de sentido, como o consumo de coisas que pendem entre o conforto pessoal e a conquista ou manutenção de um status quo. Por essa dinâmica de trabalho na qual estamos inseridos, gastamos a maioria esmagadora do nosso tempo e energia na atividade que escolhemos - ou não - para atuar profissionalmente. Nossa profissão, dessa forma e para várias pessoas, acaba "sendo a nossa vida".

[Isso vale para os estudos em pessoas que ainda não trabalham, mas passam a maior parte das horas de seus dias estudando para chegar nesse ponto algum dia e "ser alguém na vida"]

Então temos dois pontos aí perigosíssimos de serem misturados: o tanto de espaço, tempo e energia que gastamos com nossas atividades profissionais e o quanto elas tendem a não representar algo que nos encha de sentido, significado e paixão.

Mas a necessidade de viver o estado da paixão, eu insisto e defendo, é algo presente na gente.

Se não conseguimos isso na nossa vida profissional, vamos buscar onde?
Nos relacionamentos interpessoais. Mais comumente nos amorosos.

E é aqui que dá a bosta, na maioria dos casos, na minha opinião.

Vivemos na contra-mão do que defendeu meu amigo lá atrás naquele diálogo adolescente coberto de sabedoria juvenil. E desistindo da busca pela paixão pelos afazeres - já que esse se mostra parecer impossível para a maioria de nós - apostamos todas as nossas fichas - e pra mim o mair perigoso, a nossa felicidade - na paixão pelo outro. Mas especificamente o outro que se faz para nós de parceria amorosa necessariamente.

E é claro que se apaixonar por alguém é gostoso e importante. Pois estar apaixonado é de fato uma delícia. E, repito: NE-CES-SÁ-RI-O

Mas acho importante repensarmos a paixão para além dos moldes românticos que nos foram ensinados.

Relacionamo-nos com pessoas e isso eu defendo ser de extrema importância, mas também nos relacionamos com coisas e esse tipo de relacionamento costuma ser tido como menor, por não configurar "uma história de amor" e fugir do modelo de objetivo de vida que os estúdios Disney empenharam tanto esforço para nos ensinar, não é mesmo? Mas o grau de significado vivenciado na relação com coisas pode ser tão intenso e satisfatório - e por vezes até mais na medida em que essa relação contribui fundamentalmente para o nosso desenvolvimento pessoal e auto-conhecimento - quanto em uma relação amorosa.

Não quero dizer que as pessoas não devam viver relações amorosas ou mergulhar de cabeça em suas paixões pelas pessoas que cruzam suas vidas. Eu defendo o mergulho de ponta nas paixões que desenvolvemos por indivíduos. Mas acho importantíssimo que não deixemos de lado também nossa relação amorosa com as coisas que nos trazem significado. Que também namoremos com elas, que também desenvolvamos com elas lindas histórias de amor, independentemente de vivermos isso ou não com as pessoas que escolhemos para parcerias amorosas.

Arriscaria dizer ainda que essas paixões com as coisas, com os fazeres e com os saberes, são meios de nos relacionarmos com nós mesmos, de namorarmos a nós mesmos e suprir várias demandas afetivas que são nossas, somente nossas, mas que insistimos em atribuir às outras pessoas quando nos relacionamos com elas, por vezes às sobrecarregando.

Estou aqui, falando pelos cotovelos, para defender a importância de buscarmos nos apaixonar.

Mas de buscarmos, principalmente, ampliar nosso conceito de paixão para além das paixões que vivemos com as pessoas.

De encontrarmos, em nossas vidas, vários motivos para nos apaixonar, várias paixões que possamos viver. Paixões que possamos compartilhar com nossas outras paixões.

Pessoas apaixonadas são claramente apaixonantes. Seja essa experiência vivida com outras pessoas, com fazeres e saberes, ou com ambos.

Mas que não nos submetamos à esterilidade de viver uma vida sem paixões.

Eu quero acreditar de verdade - e lutar para que essa crença seja uma vivência - que não vivemos para trabalhar, mas antes para nos apaixonar!

segunda-feira, 17 de março de 2014

"Fuck the Fashion" e outros clichês

Não gosto muito de moda. Não vou dizer que "nunca gostei", mas desde que eu me lembro, nunca fui muito fã. Não tardou muito para esse "não ser muito fã" se tornar um grande repudio ao que a indústria da moda se propõe.

Falar mal da moda e chamá-la indústria, eu bem sei, é clichê e, dentro de um certo nicho intelecto-social, já virou senso comum...

Mas eu compartilho desse senso comum, ainda que ele seja "nicho específico".
Nunca li nada muito mais sólido sobre o assunto....o que tenho de opinião não passa de achismo de boteco, ainda que muito me agradem tais achismos.

Então partamos do clichê: Não gosto da moda pelo seu caráter normativo. Ultimamente ando gostando cada vez menos das normatividades em geral devido seu caráter opressor - ainda que, em alguns casos, ele seja "sutil" - e, por tanto, potencialmente destruidor de auto-estimas.

Vejo muitas pessoas defendendo a moda como um apontador de tendências coletivas. Como se a moda fosse uma consequência, não uma causa, de determinados padrões estéticos. Isso por si só eu já acho extremamente questionável. Gostaria MUITO de saber com base em que são feitas essas estimativas de tendências. Porque o que eu observo das pessoas com que eu convivo e de alguma forma são claramente ligadas às "tendências" é antes uma busca por essas tendências do que uma identificação natural com elas. Como assim? Falas como "ai, você viu, a cintura alta tá voltando, preciso trocar minhas calças", ou "estão voltando a usar coques altos ao invés de rabo de cavalo para prender o cabelo" se repetem muito frequentemente nos dias a fora. Aí eu fico pensando, de forma bem simplista e, portanto, talvez equivocada: Se existe uma tendência e ela, por sua natureza tendencial, deveria refletir o que naturalmente é demanda coletiva, porque raios haveria essa necessidade individual de busca ativa por uma adequação ao padrão? Se a tendência fosse, de fato, algo natural do coletivo, não haveria então uma migração espontânea de conduta no sentido daquilo apontado enquanto tendência? Com essas dúvidas na cabeça se torna de grande dificuldade, pra mim, enxergar a moda como qualquer coisa diferente de outra colonização de costumes, impostos sabe-se lá por quem - ou por qual grupo - ao restante da população, ditando normas e criando padrões de normalidade, de "certo" e "errado".

Outra coisa muito clara e que pra mim derruba de forma infantilmente simples o argumento da moda enquanto tendência, não como imposição: numeração dxs manequins. Os setores que, no planeta, consomem a moda, são os mais abastados entre os demais, o chamado "mundo desenvolvido". Populações essas em franca expansão do número de casos de sobrepeso e obesidade - por causa do nosso estilo de vida cada vez mais sedentário, maior exposição a alimentos e artigos de consumo tóxicos e todo aquele papo esgotante e famigerado por muitos de nós. E como um movimento social que supostamente segue tendências ao invés de ditá-las fabrica roupas para pessoas ultra-magras num mundo em franco processo de engorda? E pior, coloca esse processo de engorda como esteticamente ruim.

Aí virão me dizer "mas ah, pessoas gordas tem mais problemas de saúde, etc". Ok, a propensão de maiores problemas de saúde associados ao sobrepeso existe de fato. Mas o discurso de combate à obesidade não é funcional, é estético! Aliás, desconfio de qualquer discurso que vá contra qualquer coisa baseando-se na ideia de "faz bem/faz mal pra saúde". Porque esse discurso busca carregar de uma certa coerência determinada ideologia para que esta ganhe algum tipo de autoridade. E se formos observar bem, essa abordagem acaba sendo muito arbitrária na maioria dos casos. Se formos pensar em coerência, deveria haver um discurso contra todas as coisas que supostamente fazem mal à saúde. Mas no geral são apenas algumas coisas que determinados grupos criticam. A galera que é contra a legalização da maconha, toma cerveja com uma frequência alarmante e não dispensa o bom e velho Mc Donald's pós balada. Sem contar os que não bebem e não saem, mas ingerem quantidades absurdas de alimentos e bebidas açucarados, mas não usam drogas porque fazem mal à saúde. Parabéns. E até mesmo o pessoal que é pró orgânicos ou se envereda pelo vegetarianismo/veganismo no geral - ainda que sempre haja exceções - não abre mão do álcool e, com frequência, de outras drogas. Então o discurso orgânico de "saúde" é muito questionável ao meu ver, independente de quem o profere. Acho que seria muito mais honesto que se assumíssemos nossos hábitos pelo motivo real e sincero: "Porque eu quis/porque eu gosto/porque sim". Sempre que eu vejo qualquer tentativa - inclusive e especialmente as minhas - de tentar explicar demais para além disso, dá merda e o discurso fica muito frágil ou incoerente.

Eu comecei falando de moda, mudei de assunto e não faço ideia de como terminar esse texto que tava nos rascunhos sabem lá os deuses desde quando...

Vai ficar assim mesmo.

quarta-feira, 12 de março de 2014

O marido da foca

https://www.youtube.com/watch?v=U88jj6PSD7w

Há alguns dias andei pensando sobre felicidade e me dei conta de nunca ter me sentido de fato feliz. E  o meu espanto veio quando essa percepção foi acompanhada de uma sensação de prazer, satisfação. Não por qualquer afirmação depressiva de existência, não é bem isso. Mas me dei conta de que a concepção de felicidade que eu conheço não me satisfaz, não me contempla e, em última análise, me mata de tédio.

Dentro dessa concepção, perceber que eu não me sinto - e acho que nunca me senti - feliz, me faz um bom tanto à vontade comigo mesmo.

Quando eu não estou feliz, ou quando estou no oposto do estado de euforia comumente associado à felicidade, eu me encontro incomodado de alguma forma. Triste, com raiva, angustiado, não importa; incomodado de alguma forma.

Esse estado de incômodo me põe em movimento e o movimento me traz mto mais satisfação do que essa euforia a que chamam felicidade. Esta me estaciona e me, por isso, me mata de tédio.

Sempre achei que esse estado de incômodo fosse o inverso desse conceito comum de felicidade. Mas me encontro na descoberta do não a essa afirmação.

O contrário do incômodo, pra mim, não é a felicidade.

É o foco.

Hoje eu me sinto focado.

Acho isso muito mais interessante e rico do que essa joça imbecil a lá Disney a que chamam de felicidade. Essa bodega não me interessa não, muito obrigado. Volte amanhã. Quem sabe? ;)


terça-feira, 11 de março de 2014

gerúndios

Nas férias do ano passado para esse ano, conheci uma moça. Dessas pessoas que entram na nossa vida por acaso e surpreendentemente ficam de uma forma surpreendentemente bonita.

Ela sempre me perguntava sobre minhas coisas favoritas. Acho que queria tentar descobrir quem eu sou, me conhecer melhor, criar mais intimidade, estreitar vínculos...

E vez atrás de vez eu a frustrava. "Acho que não sou uma pessoa de coisas favoritas", eu sempre respondia...

Ela se irritava

[e até hoje eu me pergunto se a irritação era séria ou apenas charme.... acho divertido quando as pessoas se irritam - quando eu não fico assustado com a irritação - e o charme....ele é sempre bem vindo, né?]

E no fim das contas é isso.... eu sempre busquei favoritar as coisas...mas não sei.... acho que eu sou volúvel demais para isso... ou talvez tenha vindo - ou desenvolvido - com esse defeito de fábrica... incapaz de favoritar as coisas, pouco dado a preferências...

Quando criança, mudava de profissão favorita umas 3x por semana, como dizia uma grande amiga e vizinha durante mais de década então...

Hoje eu tô aqui...em meio a mais uma das milhões das crises existenciais da minha vida..... mais uma de muitas que foram, antecedendo outras tantas que virão

Percebendo que anda ficando cada vez mais difícil me estabelecer em definições, em preferências... Essas coisas vão se transformando e me levando junto nas transformações...

Às vezes acho que a gente não é porra nenhuma no fim das contas...

Tem horas - quando isso tb não assusta - que eu acho que a gnt acaba sendo mesmo é trânsito...