segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nosso modelo (in)competente

Dentro do nosso modelo de vida, de economia, de sociedade, de relações, somos condicionados ao grande e nobre exercício da confecção de competências. Somos cobrados disso. Resultados. Eficiência. Capacidade. Inteligência. O mais capaz, o mais forte, o mais veloz, o mais atraente. Uma somatória de atributos agindo na confecção do objetivo maior: Transformar o ser humano num exímio Currículo Lattes.

Se não formos inteligentes, capazes, produtivos, perdemos nossa função na sociedade e somos automaticamente marginalizados, como o búfalo fraco na manada, que apenas a atrasa e por isso é deixado de lado, entregue aos predadores. 

Em termos de produtividade e sobrevivência esse modelo é eficaz. O problema é que não somos búfalos, somos seres Humanos. Como tal somos dotados de expectativas, angústias, sonhos, desejos, medos, amores; temos a capacidade de criar, de gerar, de ouvir, de falar, pensar e de toda uma gama de atributos muito mais vasta, muito além da lista ortodoxa inglês-graduação-MBA-e-pós-doc-na-europa. E o pior de tudo: toda essa ambição grandiosa nos afasta daquilo mais grandioso no Homo sapiens, a compreensão, a solidariedade, a preocupação com o outro H. sapiens que chora, que tem fome, que está triste, que tem medo, que quer ser ouvido, que precisa ser compreendido e amado. Nos ocupamos tanto em sermos bons, nos envolvemos de tal forma em uma lógica perversa de competição e consequente exclusão daqueles ditos não-aptos, não capazes, que foram "pesados, medidos e considerados insuficientes", que caímos na grande contradição entre finalidade e motivação. Como assim? A competência é incentivada - tal qual o espírito competitivo, essa força propulsora do pensamento competentista - pois assim o indivíduo se torna melhor, e melhor, dentro dessa lógica, significa ser mais capaz e só. Sendo mais capaz, "melhor", não só o indivíduo, mas toda a sociedade melhora. Olha a falácia aí minha gente! Como pode uma sociedade ser melhor quando a grande meta de seus indivíduos abre enormes brechas para a aniquilação da solidariedade e do respeito. "Exagero!", pode dizer você, leitor, "Não é por que uma pessoa é competente ou busca competência que ela será fria ou cruel com seus semelhantes". No entanto, quando somente a busca pela competência é incentivada - e isso nós vivemos no nosso atual modelo social - não resta nem espaço para a discussão do papel e do lugar da solidariedade no nosso cotidiano. Figura muito bem isso a atual crise do trabalho médico no que tange à sua relação com os pacientes. Vivemos um imenso e acelerado avanço tecnológico generalizado - competência, sempre mais, sempre melhor - e isso afeta, entre outras áreas do saber, a medicina. Pois bem, PET scans, ressonância magnética, cirurgias a laser e o que mais a ficção científica sonhou e se torna realidade em tantos hospitais e consultórios pelo mundo. E qual a principal queixa dos pacientes hoje? "O médico me atendeu e nem levantou os olhos para olhar pra mim. Não me examinou, não pôs a mão em mim.". Agora pensemos no significado da palavra: isso, de fato, é competência? Os fazeres humanos, quando desprovidos de humanização, tornam-se falhos, fracos, insuficientes. Não abrangem toda a complexidade do ser, não restrita somente a resultados, lucros e melhoras de performance. 

E essa cobrança toda é auto-destrutiva na própria proposta original pois esse modelo não opera com reparos. Num meio de convívio onde ser competente é ser melhor, não há espaço para a compreensão da incompetência, apenas para sua condenação. Um indivíduo quando não adquire certa competência, se frustra, sente-se incapaz, tem sua auto-estima abalada. A não conquista do objetivo já é por si só punitiva. Mas o sofrimento não para por aí, pois os outros búfalos entram em ação e reprimem o seu irmão mais fraco, incompetente, incapaz. Na natureza qual o fim do pequeno búfalo? A resposta todos nós sabemos: morte. E em nossa sociedade? A marginalização. Esse modelo competitivo-punitivo não abre brechas para a inclusão daqueles com dificuldades. Fere o princípio do próprio modelo de aprimoramento da sociedade. Exclusão não é melhoria. A exclusão desses, além de angústia, gera, direta ou indiretamente, todas as outras mazelas tão criticadas nos jornais e às mesas de jantar familiares: violência, tráfico de drogas, depressão generalizada, suicídios, tudo.

E nesse ponto o questionamento sai de foco do outro e se volta contra nós mesmos. E nós, o que vamos fazer diante disso? Vamos continuar alimentando esse modelo para nos tornarmos tão bons a ponto de não depender tanto da sociedade? E morreremos sozinhos? Capazes e sozinhos?

A beleza só existe quando a capacidade e a competência agem em favor do homem, não contra ele. Sejamos de fato competentes, de fato inteligentes. Ser bom não requer apenas competência, requer humanidade. E ser humano é uma tarefa muito da hercúlea. Isso sim é complexo. Muito mais complexo que qualquer integral, qualquer discurso nietchzieano, que qualquer análise das intenções de David Lynch. Ser humano é que são elas...

E nós que nos achávamos tão inteligentes....

"Seríamos muito melhores, se não quiséssemos ser tão bons" S. Freud 

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Verdadeiro Dragão...

Assiti um filme muito bom esses dias atrás. Não vou citar o nome do filme porque os comentários que eu farei contém spoilers. Mas de todo modo, o filme que eu vi e algumas atitudes presenciadas em paralelo (e sem conexão com o evento cinematográfico) me trouxeram à reflexão o quanto nós somos inimigos de nós mesmos -e como esse é o verdadeiro e o pior.

Parafraseando uma das falas do filme, o nosso grande problema é a nossa necessidade inquietante de querer ser especial, de ser o centro das atenções. Queremos sempre ser os mais lembrados, os que recebem mais carinho, aquele de quem mais se gosta. E no fim das contas muitas de nossas ações giram em torno desse objetivo: ser percebido pelo outro. E é tão estranho o combustível da nossa felicidade se basear em algo tão frágil.

Nos ocupamos do outro: o que o outro faz, como ele se veste, o que pensa das nossas ações, das nossas escolhas, de nossas idéias, se gosta da gente, nos aprova ou reprova. E nesse se ocupar com o outro muitas vezes nos esquecemos que o principal foco de nossa vida é a gente mesmo. E por favor, querido leitor, não interprete essa frase como uma apologia ao egoísmo. Me frustraria muito que a idéia fosse deturpada desse modo. Não quero dizer que o sofrimento ou as necessidades das outras pessoas não tem importância. E muita gente ignora o fato de que quando nós nos focamos em nós mesmos, isso - e somente isso - cria condições suficientes e substanciosas para darmos uma atenção real e sincera ao outro num momento de necessidade. Caso contrário toda atenção dada ao próximo acaba por se resumir num desvio para suprir necessidades próprias, carências em aberto.

Certa vez uma pessoa muito sábia usou uma metáfora que elucida bem essa idéia: Quando estamos num avião, uma das instruções dadas pela equipe é que em caso de emergência as máscaras devem ser usadas, e caso o usuário esteja com alguma criança, a máscara deve ser colocada PRIMEIRO NO ADULTO e depois na criança. Isso de início me revoltou. Mas como todo sábio, ela me explicou que de nada adiantaria a máscara na criança se o adulto morresse depois. Não haveria quem cuidasse dela. Para poder olhar para o outro e vê-lo de fato, é preciso haver uma boa consolidação do indivíduo que olha, se não todo olhar passa a ser mera projeção narcisista dos próprios anseios. E a intenção de cuidar do outro se perde por incompetência em cuidar de si mesmo.

Mas voltando ao foco da importância que nós temos para nós mesmos. Quando eu estava no ginásio (eu sou da época que Fundamental ciclo II era chamado desse jeito), uma professora fez uma coisa muito interessante. Ela tinha colocado uma caixa de sapato no meio da sala de leitura e nos colocou em fila para que cada um de nós víssemos o seu conteúdo individualmente. Ela afirmava que nós veríamos aquilo que era mais importante em nossas vidas. Eu fiquei muito curioso sobre o que era e como a mesma coisa podia ser tão importante para todos ao mesmo tempo. Qual não foi a minha surpresa ao me deparar com a superfície de um espelho no fundo da caixa e a minha própria imagem projetada nela. Por mais que nós amemos nossos pais, nossos filhos, parceiros, cônjuges e afins, nada é mais importante nas nossas vidas do que nós mesmos.

E isso inclui uma idéia intrigante: como o foco está sempre em nós, em nós estão as causas de nossas alegrias e angústias, vitórias e derrotas. Não no nosso vizinho, colega de trabalho, parente ou amante, mas em nós mesmos. E se conseguirmos unir a noção da real importância que o nosso interior tem para nós e do quanto nós somos responsáveis pelo que acontece em nossas vidas, o verdadeiro inimigo não mais se esconde. Vendo a raiz do problema, podemos de fato tomar atitudes efetivas para nos melhorarmos, sermos de fato mais felizes e consequentemente melhorar o mundo que nos cerca. Pois ao nos darmos conta da real influência do nosso interior nas nossas vidas, enxergamos o nosso imenso potencial tanto para gerar destruição quanto para criar soluções e coisas belas. Está tudo dentro de nós.

Por mais que nós lutemos contra ameaças externas, devemos sempre nos lembrar dos sábios ensinamentos dos orientais: O Verdadeiro Dragão está dentro de você.

sábado, 6 de novembro de 2010

Origens e motivos

Um amigo meu me deu essa idéia que de tão óbvia me espanta não ter pensado nela antes...parte do pseudônimo veio, claro, por influência de João Cabral [de Melo Neto], e por isso, uma pequena homenagem ao autor e, ao mesmo tempo, uma explicação da escolha do nome...com vocês, "Morte e Vida Severina":


O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza