segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Confissão

Porque quando as coisas estão do lado de fora, fica mais fácil lidar com elas. Então vamos lá, revelando monstrinhos.

Não sei ao certo se a origem do problema é essa, mas a situação que dispara e me lembra do problema me parece sê-la.

Ensino Fundamental.

Eu sempre me achei muito diferente e, durante um bom tempo, um tanto esquisito, para não dizer bizarro, em relação aos outros.

E esse se sentir diferente acabou refletindo em várias coisas, algumas boas, outras, nem tanto.

Eu fui uma criança mirrada, era um menino baixinho e magricelo que teve puberdade tardia, ou seja, quase um Smeagol em forma de criança.

Eu tinha que ter algum diferencial, algo para me destacar, algo que me fizesse sentir algo além de um verminho em forma de menino.

Por algo que eu insisto em chamar de sorte [por mais que muitos não gostem quando eu coloco na "sorte" essa responsabilidade], eu acabei sendo aquilo que chamam "inteligente". Para o meio onde eu estava, eu era até "muito inteligente, muito mais que a média"

E eu falo em sorte porque eu sempre me vi com uma grande facilidade para entender as coisas na escola e também uma facilidade que cheirava a inata de me comunicar. Eu via nas outras crianças extrema dificuldade nessas duas áreas. Durante muito tempo eu sempre os culpei por suas dificuldades. Como se elas fossem fruto somente de sua incapacidade de se esforçar o suficiente. Até que eu me dei conta que eu mesmo não me esforçava muito, as coisas meio que fluíam, eram naturais. A partir do momento que me dei conta disso, as coisas entraram em pane na minha cabeça, porque eu não me senti mais no direito de considerar a minha "inteligência" um mérito, um merecimento de qualquer ordem. A coisa me veio mais como um "calhou de eu nascer inteligente e numa família que estimulava isso o tempo todo".

Mas o fato é que na escola eu me destacava de alguma forma, apesar de ser um tanto quanto muito preguiçoso com as tarefas e deveres [exceto os de matemática, que para mim eram mais diversão do que qualquer outra coisa..oque eu mais tarde fui conhecer com o termo de "masturbação mental". Era isso a matemática pra mim]. E o fato de conseguir certo desempenho sem me esforçar muito apenas reforçava minha auto-imagem de "pequeno gênio". Essa imagem, entretanto, também era frágil, já que eu sabia do meu parâmetro de comparação: uma escola municipal do interior de SP. Eu sabia que apesar de eu me destacar muito ali, se fosse para uma outra escola, com um sistema de ensino melhor e crianças que tiveram oportunidades melhores que ou semelhantes às minhas [já que as que estudavam comigo na época eram extremamente carentes de oportunidades], eu seria meramente mais um no meio da multidão. O que me deixava confuso. Por um lado seria ótimo, eu deixaria de ser o esquisito que gostava de aprender as coisas e não achava aquela coisa de escola uma chatisse sem tamanho como as outras crianças, seria aceito, encontraria pares, iguais. Por outro, eu perdia aquilo que, para mim, era o que mais me destacava enquanto indivíduo, a minha "superior inteligência".

Calhou que eu terminei o fundamental na mesma escola pública e na mesma situação de marginalização e exclusão.

E qual foi meu ímpeto de reação? Eu me sentia atacado. E como bom animal acuado, resolvi atacar de volta. Me via sendo colocado numa condição de inferior. Precisava me afirmar superior de alguma forma. Usava, então, do que me era fácil e natural: a cabeça. Passei a tentar enxergar que não era eu o inferior pelos meus medos e dificuldades físicas, mas eles eram os inferiores por não acompanharem meu modo de pensar. E tinha pra mim uma certeza de que dali a alguns anos, eu estaria "próspero" na vida, enquanto eles, se não estivessem presos, estariam fadados a subempregos e famílias desestruturadas.

É, eu sei, é uma visão extremamente podre, ainda mais vindo de uma então criança pré-púbere. Mas era o que me vinha à cabeça, fosse digno ou não, belo ou não.

E como consequência disso, me peguei dizendo frases das quais hoje em nada me orgulho e tenho até certa repulsa. Jargões de uma direitez asquerosa como "a massa é ignorante".

Não via no popular e no que era de massa nada que se pudesse extrair de bom. O que era bom era o marginalizado, o excluído, o diferente, único. Não no sentido social, mas no de concepção de mundo. Ou seja, me tornei para mim a medida do que era bom.
[mais arrogante, impossível]

O tempo passou, mudei de escola, me formei no ensino médio, fiz 4 anos de cursinho e ingressei na medicina numa universidade pública.

Ao longo dessa trajetória eram cada vez mais raros aqueles que me fizessem lembrar os meus colegas do fundamental e, pouco a pouco, minha arrogância foi adormecendo. Nunca o fez por completo, mas em comparação à forma gritante e defensiva como ela se apresentava então, a diferença era notória, pelo menos pra mim.

Mas eu disse adormecida, não atenuada. Porque ela ainda está aqui e essa percepção me veio muito forte num tipo de confronto que eu não esperava encontrar, ainda não da forma como veio.

Num dia qualquer eu fui convidado a trabalhar com um grupo. Um grupo que trabalhava com jovens que muito me lembravam os que estudaram comigo no fundamental, os que me julgavam e excluíam [seja por iniciativa ou já reação à minha defensiva]. Esses jovens não me julgaram, nem excluíram. Mas eu percebi que a simples presença deles, a sensação de estar novamente imerso num grupo que tanto me lembrava o algoz do passado me deixava num estado de alerta e de defensiva aterrorizantes. Pensamentos dos mais preconceituosos, prepotentes e excludentes pipocavam na minha cabeça, quase como com vida própria. Meu medo daquilo transparecer veio crescendo de uma forma que estar lá, confinado naquele espaço se transformou numa angústia terrível , ainda que eu não estivesse de modo algum interagindo com nenhum deles.

Qual não foi a minha surpresa quando fui convidado [quase convocado] para permanecer no grupo e dar uma certa continuidade naquele tipo de trabalho?

Irrompeu dentro de mim um sonoro "Não!" E depois, justificativas das mais variadas..."não, não faz sentido, não me sinto bem aqui, não vou fazer algo que eu não me sinta bem", "eu tenho que estar aqui para fazer um bom trabalho,como vou fazer isso sem a disposição de levantar cedo para vir aqui? não posso" ou "para trabalhar aqui eu teria que ter a vontade de vir, como quem deseja uma diversão. E isso me gera algo que beira a repulsa, não posso ficar, não posso"

Mas algum tempo depois, refletindo nas origens dessas frases e das sensações por ela evocadas, me veio clara à mente a imagem da minha turma do fundamental e o medo e a exclusão e a sensação dos piores anos da minha vida, das piores manhãs, os piores despertares.

E aí eu entendi. O grupo me lembrava outro, que me fazia perder certo controle à parte de mim que quer esconder meus preconceitos e minha arrogância. Eu sei que continuando no grupo, eu vou enfrentar uma das minhas maiores dificuldades. Serei forçado a exercitar de fato [ou melhor, desenvolver] algo semelhante à humildade, que eu não tenho, pelo menos não do jeito que gostaria. E lá, serei exposto à mim mesmo, às coisas que não aprovo em mim mesmo, mas que de certa forma também incentivo, pelo conforto da situação.

Auto-percepção é um negócio complicado. Necessário, mas extremamente doloroso.

Talvez eu esteja escrevendo para tentar me redimir da culpa. Ou talvez para encontrar coragem para me enfrentar.

Ou quem sabe, ambos.

"Forgive me Father, for I have sinned"

Nunca tinha entendido direito esse costume católico
Mas diante dessas palavras aqui postas, realmente, confissões dão um certo alívio.

Um comentário:

  1. To aqui impressionado pela tua sensibilidade em perceber e identificar a tua necessidade...mesmo! grato por dividir um pouco de vc mesmo.

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